sexta-feira, 22 de outubro de 2010

repeticion

Peguei um livro de receitas fáceis e pude notar a dificuldade em que me encontrava de realizar uma simples tarefa amorosa: cozinhar para as pessoas que amo.
Deitei ao lado do livro, eram dez horas; os meninos já haviam saído de casa, eu deveria estar estudando as nove em Niterói. Acordei as sete, desliguei o despertador, dormi mais dez minutos, levantei, vim até a sala, olhei pro Cristo na montanha, peguei o celular e pensei em mais uma desculpa esfarrapada para enviar ao telefone a minha pobre colega de curso. Não que ela seja desfavorecida, muito pelo contrário, é provida de inteligência, energia e disponibilidade, coisa que no momento não apetece o meu dia.
Inveja a parte, amizade nesse momento parece mesmo ser obra do acaso. O acaso não tem batido muito a minha porta ultimamente.
Acordei de um sonho onde meu avô me chamava: Venha, levanta! levanta!Alguma coisa assim. Abri os olhos assustada e pensei que talvez ele quisesse me alertar de algo. Na verdade foi um pouco mais nostálgico, pois me lembrei do tempo em que estava deprimida e só conseguia dormir e comer. Ele me acordava para comer, provavelmente era uma questão de vida e de morte. Talvez seja sempre uma questão de vida e morte. Levantar da cama, abraçar o marido, colocar café pro filho, correr com o dever que não foi feito no dia anterior, dar um beijo nos dois na porta do elevador e voltar pra cama novamente; abraçada ao livro de receitas.
Antes de adormecer, ouvi um ruído vindo de fora do quarto e pensei que fechar a porta fosse mesmo necessário. Tive medo que alguém entrasse e tranquei meu quarto para que o sono viesse. Fechei os olhos e percebi que estava na cozinha, tentando enxergar pelo olho mágico, que estava tapado, escuro; e logo pensei: Alguém está tampando e talvez esse alguém seja perigoso e queira entrar aonde não é chamado.
Dormindo em um estado quase que intermediário do sonho, senti meu corpo pesado tentando reagir aquele chamado e ao perigo eminente que rondava minha casa. Tentei abrir os olhos, pensei em pegar o telefone que estava sobre a cama, talvez pudesse ligar para o Léo e desse tempo pra ele voltar pra casa e me salvar daquele perigo: o homem que estava lá fora tentando entrar e o meu avô que me dizia pra levantar... Levantei, olhei para as cortinas e lembrei-me das da minha avô, daquelas esvoaçantes e pomposas cortinas que eu fechava e guardava o mundo para uma outra hora. Aquele lugar muitas vezes havia me servido de abrigo.
Pensei em lavar a cortina encardida e amarelada, quem sabe tingi-las de uma cor quente e alegre, daí lembrei-me das paredes que deveriam ser pintadas, do móvel do quarto do Diogo e de tantas outras coisas que faltavam serem feitas por mim...
Talvez a solidão e a depressão, a crise e a confusão desse momento não seja tão velha assim, não deva ser eliminada como uma chaga impeditiva, talvez meu avô tenha alguma outra coisa pra me falar.
Minha irmã me liga e diz que foi clonada, que gastaram milhões no seu cartão, meu pai ao telefone me convida pra sair, eu ainda falo a mesma coisa: estou doente, em casa, tomando antibiótico e esperando a formatura. Há praticamente dez anos, repito a mesma ladainha: doente, em casa, tomando antibiótico, esperando a formatura.
Não dá realmente pra fugir do Supereu.
Mas ele é tão repetitivo também. Sempre querendo as mesmas coisas, os mesmos encontros, os mesmos presentes, as mesmas perguntas. Talvez não deva fugir. Deva abrir a porta do quarto, parar de olhar através do olho mágico e escutar o que meu avô tem pra me dizer...

Um comentário:

  1. Adorei, Marcella! Sensível, detalhista e revelador. Quando você ouvir, me fala, tá? beijos

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